sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

In Mortis Examine



Morreu n’algum ponto entre a nona e a décima curva da estrada deserta. Levantou-se e mal olhou o cadáver lacerado – pouco importava, afinal. Mal retinha os detalhes perimortem na memória. Lágrima ou outra, oco no peito, abismo nos pés. Palavras duras, voz de veludo. O fim do mundo contido em poucas sentenças. Tempestade vermelha e negra entre crime e castigo. O de sempre.
Morta, deixou o corpo, limpou a sujeira, caminhou. Seria a terceira ou quarta de suas mortes? As lembranças não se sustinham. Eram os tais primeiros minutos. Quanto mais até o rigor mortis? Quanto mais até que os últimos resquícios de vida se dissipassem numa sinapse incompleta?
Você é tão fraca, o cadáver se aproximou.
Deve estar doendo, respondeu indiferente.
Não mais do que doeu das primeiras vezes, rebateu conformado. Então?
Então...?
O que vai ser? Luto? Revolta? Reclusão?
Passei da idade, e cerrou os lábios.
Talvez fosse a quinta de suas mortes, não estava certa. As convicções caíam pela estrada, aos pares, junto a tudo que era concreto. O cadáver a seguia de perto e ela sabia que assim seria. Testemunharia a própria dor como alma fora do corpo. Anestesiada e dormente. Equilibrada mal e porcamente na linha tênue entre culpa e culpado.
O que sabia, o que tinha por certo é que entre mortos e feridos, salvavam-se os fortes e ela nunca fora capaz de preencher aquela estatística. Seu destino era sempre morte, fosse numa beira de estrada, numa casa em ruínas, num banco traseiro, numa vala comum. Causa mortis: excesso.
Mais que fraca, sentia-se exausta. Só queria que a abiose encerrasse todas as amarras que a prendiam à vida. Respiração. Impulsos. Circulação. Sonhos. Vontades. Pesar. Quando se morre mais de uma vez, tudo é questão de hábito.
Mas eis que caminhou indistintamente por uma hora ou um minuto, talvez menos, ou talvez mais, e voltou ao mesmo lugar em que estava antes e sempre estivera. Morta, entre a nona e a décima curva. A quarta ou quinta de suas mortes. Eviscerada na beira da estrada.
Que assim seja, e deitou-se no asfalto.
Assim será, o cadáver a acompanhou.

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito bonito e extremamente bem escrito - como sempre. Nem foi dos q eu mais curti, mas rolou uma invejinha durante a leitura. :~~~

/nelson