segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Linger

Para ler ouvindo:


— É amor.
— É culpa.
— É tesão.
— É falta.
— E o que nós faremos?
— O que fizemos a vida toda.

Ele roubou o cigarro dos lábios dela, deu uma tragada, aspirou fundo a nicotina e o pousou no cinzeiro enquanto soltava a fumaça devagar. Ela apenas o observou. Desceu os olhos pelas suas costas, pelas cicatrizes lívidas que ladeavam a coluna bem pronunciada sob a pele. Ele apoiou o peso nos dois braços e alongou-se.

— Agiremos como adultos?
— Falaremos sobre o tempo...
— As pessoas...
— O trabalho...
— Uma média aritmética de tudo o que for banal e menos interessante do que o que somos hoje.
— Algo assim.

Ela ainda ressonava sobre os lençóis em desordem. Ele encarava o dia cinza pela janela panorâmica, sentado na cama. O cigarro ainda queimava, esquecido sobre o cinzeiro.

— As coisas não precisam ser assim.
— As coisas não precisam ser.
— Você foge.
— Você luta.
— A fuga é covarde.
— A luta é estúpida.

Ele enterrou o rosto nas mãos, ela continuou a olhá-lo. O relógio do videocassete piscava as 12h que há tempos já não eram, em letreiro azul. A cidade lá fora parecia estagnada. O tempo parecia estagnado. As horas certas passavam despercebidas.

— Por que você não arrisca?
— Por que você não me solta?
— Por que você não me cega?
— Por que você não me erra?
— É quase um poema...

Ele escorregou as mãos para o queixo. Olhou-a pelo canto dos olhos. Ela ainda o observava. Suspirou. Suspiraram. Ele deitou-se ao lado dela, envolveu-a nos braços. Ela prendeu a respiração, imóvel. Ele estreitou o abraço. Tinha cheiro de cigarro e lavanda. Permaneceram mudos, ele, de olhos fechados, ela, com os olhos vidrados, encarando o teto, desejando estar em outro lugar.

— Vamos parecer dois idiotas.
— Eu vou rir.
— Eu vou saber do que você vai estar rindo.
— Vou tentar não pensar nisso.
— Eu vou estar pensando em você.
— Eu sei...

O despertador dela tocou. A tensão que os mantinha imóveis se quebrou, ela estendeu a mão direita para silenciar o aparelho. Alguns segundos de mais silêncio. Ela se sentou na cama. Ele cobriu os olhos com um dos braços e chorou.

— Nós não precisamos nos amar pra fazer isso.
— Mas parece errado não amar depois de fazê-lo.
— A decisão entre amar e não amar cabe unicamente a nós.
— E você acha que é possível escolher entre um e outro?
— Eu acredito nisso piamente. Você não?
— Deixa de ser uma escolha quando as coisas caminham bem.
— Deixa de ser uma escolha para ser...?
— Uma obrigação.
— Você não tem a obrigação de me amar.
— Nem você.
— Mas e se eu quiser?
— Você não quer.
— Tem razão, eu não quero.

Ela o olhou por mais algum tempo antes de começar a se vestir. Apanhou as roupas espalhadas pelo chão, enfiou algumas delas de qualquer jeito em sua bolsa de náilon preto. Passou as mãos pelos cabelos, desamassou a blusa que vestia e o olhou novamente. As lágrimas manchavam a pele morena. Com um último suspiro, ela abriu a porta e saiu.

— E quando eu falar sobre o clima...
— Eu vou estar pensando no quanto você se arrepia quando eu te mordo...
— E quando eu disser que vai chover...
— Eu vou me lembrar do quanto suas mãos são geladas...
— E quando eu disser que nunca mais faremos isso...
— Eu vou pensar no quanto quero fazer isso de novo.

Ela andou por alguns quarteirões, sentindo o sol arder na pele, a tristeza estampada nos olhos franzidos. E lá se ia uma grande história. Poderia ter sido muita coisa, mas não era amor e aquilo doía.